23 de mai. de 2011

Meio Médium

          Já cansado de viver em cidade grande, aceitei transferência para uma pequena vila escondida no interior de todos os interiores. Poucos bancários duravam naquele lugar – um cargo único: gerente e atendente - em poucos meses estavam a discutir com os clientes assuntos pessoais. A mim disseram: “para este cargo é necessário trabalhar, progredir, mas não viver”. É claro que aceitei. Parecia o lugar perfeito para garantir bons rendimentos pela vida alheia.
Em setembro quando me mudei, passei um tempo negociando com um solteirão a vaga no único prédio da cidade. Era tão único que provavelmente lhe negaram vender as tintas para terminar sua pintura.
- Imagine só, disse-me o pintor ao encontrar na rua, nunca se usou tanto de uma cor em uma só construção, era certo que faltaria tinta.
Mas isto era perfeito para mim. A cidade estava envolvida em uma cultura que os sufocava como uma serpente. Não se podiam expandir as idéias, e não se podia confiar em mais ninguém.
Como me fiz de homem sério, não demorou muito para conquistar confiança de muitos, saber todos os medos, as invejas, e abrir diversas contas e lotar o cofre para guardar tudo, pois ninguém podia saber quanto se tinha. O lema da cidade tinha que prevalecer:
“Simplicidade e fé”
Em menos de dois meses, já estava sabendo quem eram as putas da cidade – e isto me espantou porque era proporcional ao número de mulheres, segundo as fofocas; quem eram os homens trabalhadores, as maravilhosas esposas – que outra hora eram as putas. Mas havia também o famoso prefeito – que todos diziam - tinha o casamento mais perfeito onde qualquer luxuria era permitida.
Um dia veio verificar suas aplicações. Dr. Jorge - como chamavam, mas me pediu que fossemos íntimos, e que Jorge se tornasse a única palavra direcionada para chamá-lo. A voz grossa fazia as mocinhas que estavam na fila estremecerem imaginando aquele grande homem – em altura também – abraçando-as como força e lhes dizendo o que deveriam fazer para deixá-lo satisfeito. Cheguei até perder a atenção vendo seus rizinhos marotos.
Jorge me pareceu um homem realmente confiável. Tinha as palavras certas, que mais ninguém na cidade tinha. Mas um péssimo costume de apoiar a mão em quem conversava, e afagar a parte onde a mão estava, seduzindo até mesmo os velhos e barrigudos latifundiários da cidade. Isto sempre me deixava sem jeito, e aos poucos ia me desviando da sua mania.
Mas Jorge foi apenas um bom caso para se lucrar na cidadezinha.
Eis que um belo dia, a uma velha mulher, resolvo-me relevar como médium. Dom que percebi presente em minha cabeça ainda quando muito jovem.
Abro aqui um espaço para uma breve retrospectiva: um fantasma aparecia todas as noites em meu quarto, correndo da janela para a porta e desta de volta a outra. Até que meses fugindo de sua imagem por baixo das cobertas de minha cama resolvi indagá-lo:
- Não tens outro lugar para passear?
- Não há outra pessoa além de ti a me ouvir – falou uma voz que na certeza era minha imaginação, e continuei – preciso deixar um recado aos meus pais.
Tal recado era na verdade idéias faladas de vizinho a vizinho sobre o rapaz atropelado a alguns meses. Após ouvir, ou inventar tudo que ele me disse aquela noite, fui até o endereço pelo fantasma indicado, e por mim bem conhecido, falei a um casal todos os recados mórbidos de seu filho.
Naquele dia, percebi o dom que me envolvia, de tornar histórias naturalmente recebidas em fenômenos sobrenaturais. Os país choraram e agradeceram por milhões de vezes a mensagem recebida. E foi a primeira vez que recebi “presentinhos” pelos dons mediúnicos.
Como sempre tive a cabeça voltada para a matemática, fiz disto outra forma de lucro. E especializei-me ver sinais nos restos do café deixados pelas pessoas, mas nunca fiz curso para tal invenção.
Bom a esta altura, deves ter percebido que não podia eu ter envolvido tão bem dois “empregos”. Ou há mais lugares no mundo onde pessoas preocupadas com a vida bebam tanto café e deixem seus “sinais” sobre a mesa de um visionário.
Voltando ao caso da velha senhora, ela era o alvo certo para começar, pois as dívidas envolviam sua mente em uma tempestade de dúvidas que a impossibilitava de até mesmo escrever seu nome direito. E eu disse:
- Os sinais são claros em seu copo de café.
Ela arregalou os olhos enquanto eu analisava as imagens – não via nada a não ser restos de água suja e baba - formadas com as últimas gotas. Não precisei aguardar muito até que ela começou a me encher de perguntas, e assim contando fatos de sua vida, da onde pus minha criatividade em prática para ora acalmá-la, ora assustá-la.
Pouco tempo depois ela aceitou um novo plano de investimento, inviável é claro, mas perceptível somente em longo prazo.
E assim, como o adorável sistema da cidade pequena, aos poucos as pessoas souberam de meus dons. Mantinham segredo, passando de um por um, sem comentar em praça pública. O que se sabia só era passado para o mais intimo, que era íntimo de outro.
Um dia atendi um rapaz - perto dos vinte - que dois dias depois teve uma morte horripilante: havia se jogado no penhasco de uma pedreira. A cidade ficou abalada e começou um boato de que eu havia previsto tal barbaridade. Bom para os negócios, mas o rapaz tinha me deixado mesmo um legado de histórias que em breve eu iria por em jogo.
Após diversas consultas, certo dia, chegou-me uma dama, que era mesmo uma dama em todos os sentidos. Já havia a visto pela cidade, e chamava atenção pelo seu carinho com as pessoas e os vestidos que grudados ao corpo mostravam o desenho de mulher que qualquer homem queria possuir. Naquele dia ela veio depositar míseros cem reais em sua continha criada naquele momento. É claro que seu maior interesse era conversar na sala separada para atendimento especial aos clientes.
Ela nunca havia necessitado de uma conta, pois seu amado prefeito, tinha lhe sustentado a vida toda. Mas agora, além deste dinheiro ser seu início de um futuro incerto, estava ela interessada em saber da angústia que envolvia o marido, que não a abraçava mais, e passava as noites apertando um travesseiro e cheirando-o sem parar.
- Que fique somente entre nós! Preciso saber para o que devo me preparar, casamos em comunhão de bens, mas tenho medo que ele esteja envolvido em dívidas, e eu não receba nada caso nos separemos.
Por alguns segundos pensei que ela queria saber se seu sustentador estava envolvido em um caso, ou mais de um, como haviam me revelado ele e as demais envolvidas. E não pude perder a oportunidade me dada, ela precisava saber bem verdades, para falar muito mais sobre meus dons e se por confiante neles.
- Não é este o problema de seu esposo, dívidas não o envolvem – falei olhando sério para o copo de café que ela bebeu rápida e nervosamente.
- Então o que é? Um caso com outra mulher?
- É um caso sim, e não apenas com outra mulher.
Assustada, devia ter imaginado todas as secretárias e conhecidas que se aproximaram de seu marido e se aproveitaram de sua libido desenfreada.
Passou alguns minutos sem falar nada, apenas olhando para minha mesa. Sorte que o horário de atendimento já havia encerrado. Eu estava disposto a avançar não apenas no ganho com as revelações, mas também podia conseguir tirar uma lasquinha daquele corpo perfeito.
- Você consegue ver quantas são?
- Mulheres foram mais de vinte, mas há também...
- Por favor, não me fale! Seria horrível ouvir isto de um estranho também. Não acredito que chegou a tanto realmente.
- Minha Senhora, quem pensa com sexo, não sabe diferenciar os buracos.
Enquanto chorava, pegou papel e caneta, escreveu um recado para que eu retirasse da conta do prefeito o dinheiro que quisesse por esta consulta e colocasse como sua responsabilidade. E permaneceu lá chorando, enquanto fiz toda a papelada e coloquei sobre a mesa para que ela assinasse.
Naquele instante desisti de tê-la como mulher, apenas como amante quem sabe, pois me parecia sensível de mais a ponto de se propor a tais burrices.
Ela foi embora, mas não demorou muitos dias para voltar. O prefeito por sua vez, não vi mais no banco, e muitos comentavam que vivia trancado na prefeitura sem muito se comunicar. Nesse meio tempo mantive anotado tudo que ele mesmo já havia revelado, em breve poderia mudar o destino daquela cidadezinha, que nunca teve suas fofocas transformadas em uma ruína apocalíptica.
            Quando a Dama voltou, no final do expediente como da outra vez, estava disposta a ouvir mais.
        - Estou encaminhado toda a papelada. Mas preciso saber tudo. Por qual paixão ele chora tanto agarrado ao travesseiro?
            - Era seu parente o moço que faleceu na pedreira? – Comecei o contorno.
          - Que isto tem a ver com minha pergunta? – No momento pensei que ela não fosse como todas as pessoas a me consultar, dispostas a envolverem-se nos mistérios do além.
             - É que esta foi a última alma a se comunicar comigo em noites passadas.
             - Sim - ela concordou em meio ao choro - ele era primo de Jorge.
         Será que era? Primos sempre são vistos como estranhos, chegam de repente, se tornam grandes amigos e passam muito tempo juntos. Ela já começava a olhar fundo, imaginando toda a estranheza que envolvia o misterioso aparecimento do tal primo.
              - Pois bem, o travesseiro ao qual ele se abraça e chora todas as noites é o do jovem.
              Colocando a mão na boca, e fazendo cara de espanto ela perguntou com inocência:
              - Era o filho que nunca tivemos, ele me dizia! Não me admira que ele tenha ficado tão abalado. E eu imaginando que ele não tinha coração, querendo me ver longe de um traidor.
            Esta  mulher  era demorada para ser afetada pelos efeitos dos boatos maliciosos, mas eu não iria deixar passar tão fácil.
             - Mas  ele  não  o  via como filho, porque filhos são amados, este amor sentido era pensando com outra cabeça.
               - O que quer dizer com isto? Que tinham um caso como comentam pela cidade?
              Realmente  comentavam,  e nunca se sabe como se convenceram tão bem. Mas esta fofoca já esta no seu estagio final, a ponto de cegar qualquer esperança da Dama.
              - São  sinais  presentes  em  seu  copo.  A  sua  boca  beijou a boca de mais de um homem em um mesmo homem.
             Desta  vez  ela  não  escreveu  bilhete,  saiu  correndo do banco e desapareceu dentro do carro. Levando apenas o bilhete que lhe entreguei com meu telefone no início da sessão.
               Fiquei sabendo no outro dia, que a Dama havia deixado o tabuleiro, que o Rei permaneceu sozinho em seus passos demorados, e sobre este efeito também renunciou ao cargo dois dias depois.
                O fato é que dias mais tarde tive um pequeno momento de agrado após a ligação da Dama.
    A cidade permaneceu cega à idéia de que o prefeito abandonara sua Dama por um cavaleiro, mas a verdade estava escrita na história de sua juventude: o jovem suicida revelou-me dias antes em breves perguntas que aguardava o retorno de um poderoso homem aos braços de sua mãe; noutro dia o Vice - que nunca teve brilho - veio a mim ameaçando revelar que eu era um farsante, mas falando muito sobre o caso do filho bastardo que só ele sabia ser do prefeito, e que com isto poderíamos lucrar juntos.
            Num  acordo,  transformei  as esperanças do jovem em um martírio, para mim inesperado, mas superei. O dinheiro pago foi alto. E o boato espalhado pelo ”fiel” companheiro do prefeito foi drasticamente injetado em sua peça principal, não lhe deixando ouvidos para explicações.
             Por fim, sei que segredos são segredos com apenas uma pessoa. Um dia a imagem do fantasma suicida apareceu em meu quarto andado de um lado para o outro, e eu resolvi perguntar o que ele fazia por ali.
               - Vim garantir a verdade! – disse-me a voz do Xeque Mate.

Um comentário:

  1. Muito bom o texto! Prende a atenão do leitor do início ao fim. A sutileza do humor e a elaboração da linguagem enriquecem o trabalho.
    Parabéns!
    Abraço, Laura

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